sexta-feira, 29 de maio de 2015

Capítulo 3: Os Atomistas



                                            Leucipo e Demócrito
   Nem todos os filósofos concordavam com a ideia de uma substância indestrutível como o apeíron. Heráclito, por exemplo, considerava o universo essencialmente como mudança, sem supor a existência de uma substância fixa. Alguns fragmentos, sobre as ideias de Heráclito, parecem indicar que ele considerava o fogo como sendo o formador de toda matéria. Mas o fogo,
para ele, é energia, não é uma substância, mas movimento.

Demócrito de Abdera (460 a.C. — 370 a.C.)
   No século V a.C., o estudo das transformações da matéria atingiu um ponto máximo, quando ocorreu o rompimento total com o pensamento mitológico. Foi nessa época que surgiu o atomismo grego, com Leucipo e Demócrito. Na realidade, não se tem certeza sobre a existência do primeiro. Os comentadores, algumas vezes, dão pistas que conduzem a uma identificação entre Leucipo e Demócrito, de modo que não se pode saber com certeza se Leucipo realmente existiu.
   O pensamento de Demócrito não é bem conhecido, porque suas obras não chegaram até nós, a não ser fragmentos. Mas o atomismo foi utilizado depois por Epicuro e seus discípulos. Suas obras propagaram as concepções de Demócrito, que conseguiram assim maior divulgação.
                                   Filosofias Materialistas
   No primeiro século antes de Cristo, o filósofo romano Lucrécio escreveu um extenso livro onde defende e explica detalhadamente as ideias atomísticas “De rerum natura”. Quando se compara a obra de Lucrécio com os fragmentos das obras de Demócrito encontra-se uma concordância quase perfeita. Portanto, é provável que o livro de Lucrécio reflita muito bem as concepções originais dos primeiros atomistas.
   Este livro é a fonte de informações sobre o atomismo grego. A quebra total entre os atomistas e os mitos aparece claramente, no poema onde Lucrécio começa descrevendo o objetivo da filosofia atomista:
“Quando a vida humana era vista caída totalmente sobre a terra, esmagada sob o peso da religião, que mostrava sua cabeça, dos quartos celestes, mirando com aspecto terrível sobre os mortais, um homem da Grécia arriscou-se pela primeira vez a elevar seus olhos mortais para seu rosto, e enfrentá-la face a face. A ele não podiam amedrontar nem histórias de deuses, nem relâmpagos, nem o rumor apavorante dos trovões nos céus. Isso

Tito Lucrécio Caro (latim: Titus Lucretius
Carus; 99 a.C. – 55 a.C.). Filósofo romano.
apenas avivava mais a coragem ávida de sua alma, enchendo-a com o desejo de ser o primeiro a romper as resistentes barras dos portais da natureza”. (De rerum natura, I-62).
   Lucrécio está se referindo a Epicuro que foi, indiretamente, seu mestre, e que enfrentou
diretamente a religião com sua filosofia. Observe que a palavra religião se refere ao que hoje chamamos de mitologia. Até o surgimento das filosofias materialistas, todas as demais linhas de pensamento ou filosofias continham elementos religiosos. Uma das frases de Tales era “O mundo está cheio de deuses”.
   A filosofia dos atomistas é conhecida como uma filosofia materialista, mas o sentido dessa palavra não é exatamente igual ao atual. Os atomistas não negavam a existência, por exemplo, da alma. Para eles a matéria precedia tudo, até as almas seriam constituídas por um determinado tipo de átomo, por este motivo eles foram chamados de materialistas.
   Observe que Tales não era um filósofo naturalista, segundo o sentido que se dá a essa palavra, pois ainda continuava admitindo que as coisas operavam-se por meio de deuses; em outra de suas frases ele diz “o ímã atrai o ferro por meio de uma alma”.
                                        Contra os Sacrifícios
   Assim, sua alma ganhou o dia, ele ultrapassou e foi muito além das paredes flamejantes do mundo. Atravessou em mente e espírito o universo imensurável. Daí ele retornou como um conquistador para dizer-nos o que pode e o que não pode acontecer. Em resumo, qual o princípio que define o que define os poderes de cada coisa, seus limites mais profundos. (idem, I–71).
   Segundo Lucrécio, o trabalho importante de Epicuro foi o estabelecimento de leis da natureza que já não dependia de deuses. O mundo já não era dominado por coisas incompreensíveis. Lucrécio continua seu poema tentando convencer seus leitores a continuar com a leitura.
   O que temo agora é que você possa imaginar que está entrando no solo ímpio da razão e percorrendo caminhos pecaminosos; enquanto que, pelo contrário, muitas e muitas vezes a mesma religião conduziu a ações pecaminosas e ímpias.
   Como havia uma religião oficial na Grécia, as pessoas tinham medo de estudar os fenômenos do ponto de vista físico. Lucrécio podia escrever livremente, pois em Roma não havia problemas com a religião. Assim, ele tenta mostrar que a religião é que é má, pois acaba levando a atos pecaminosos, conforme o exemplo que ele dá a seguir.
Assim em Aulis, os chefes escolhidos dos Donai, superiores entre os homens, totalmente poluíram com o sangue de Ifigênia o altar da mulher de Trivian. Pois, suspensa nas mãos dos homens, ela foi carregada em pânico ao altar, na própria estação do casamento; jovem imaculada em meio à mancha de sangue, caindo uma triste vítima do golpe sacrificador de um pai, para garantir uma partida feliz e próspera à frota. Tão grandes são os males que a religião pode trazer! (idem, I-83).
   Lucrécio está se referindo a um acontecimento que depois levou à produção de uma tragédia grega, “Ifigênia em Aulis”; um rei ia mandar uma frota de navios pelo mar. Como o mar estava feroz, ele consultou um oráculo, para saber o que deveria fazer para os navios não naufragarem, e a resposta foi que ele deveria sacrificar sua filha; ele mata então sua própria filha para que a frota possa navegar em segurança.
   Lucrécio ressalta, assim, que a superstição e o temor religioso acabam criando situações desse tipo, e pensa que, se as pessoas entendessem que as tempestades não têm nada a ver dom deuses, elas poderiam se livrar do medo e a submissão aos sacerdotes ou oráculos.
Você mesmo, dominado pelas lendas apavorantes dos videntes, procurará escapar de nós...  ...pelo terror daquilo que vai acontecer depois da morte, (I-102), como diz Lucrécio.
                             Origem da Concepção Atomística
   A idéia dominante naquela época era que para não sofrer um tempo infinito no inferno, as pessoas deveriam ser bem comportadas e seguirem os conselhos dos sacerdotes. Mas com os filósofos atomistas, ocorre uma ruptura completa com as ideias anteriores sobre deuses, coisas sobrenaturais e imprevistas. Eles procuram entender a natureza, não por meio de analogias, mas por causas naturais e leis constantes.
   A obra de Lucrécio mostra detalhes da concepção atomística de Demócrito. Ele começa colocando o primeiro princípio, dizendo que nada vem do nada. A obscuridade da mente e seus temores devem ser desfeitos não pelos raios do sol e pelo brilho do dia, mas pelo conhecimento das leis da natureza. Com esse objetivo começaremos com o primeiro princípio:
                          “Nada jamais pode ser produzido do nada pelo poder divino”
   Depois, Lucrécio utiliza uma versão simplificada desse princípio “nada vem do nada”, mas aqui já está bem claro que se refere ao princípio mencionado acima, renegando a crença no poder dos deuses.
O pavor mantém ameaçados os mortais, pois eles vêm muitas coisas operando na Terra e no céu, cujas causas não compreendem, acreditando por isso serem provocado pelo poder divino. Por essas razões, quando tivermos compreendido que nada pode ser produzido do nada, poderemos de maneira correta o que estamos procurando os elementos, a partir dos quais todas as coisas podem ser produzidas, e a maneira pela qual tudo se faz sem as mãos dos deuses. (De rerum natura, I – 46).
Se as coisas viessem do nada qualquer espécie poderia nascer de qualquer coisa, nada exigiria sementes. Os homens, por exemplo, poderiam sair dos mares, e os pássaros poderiam brotar dos céus... Nem os mesmos frutos viriam sempre das mesmas árvores, mas mudariam e qualquer árvore poderia gerar qualquer fruto. Portanto, devemos admitir nada vem do nada, pois as coisas exigem sementes antes que possam nascer e serem trazidas aos campos aéreos. (De rerum natura, I- 50). 
  Lucrécio cita vários exemplos naturais, mostrando que as coisas não acontecem por acaso, desordenadamente, e que não podem surgir do nada. No universo, há algo que se conserva, e há leis que regem os fenômenos. Este é, também, o princípio fundamental de Epicuro e de Demócrito, de acordo com as informações disponíveis.
Antes de tudo, nada vem do nada, porque qualquer coisa nasceria de qualquer outra coisa, sem necessidade alguma de semente geradora e se aquilo que se transmuta terminasse no nada, tudo já teria sido destruído, e não existiriam mais as coisas em que tudo se dissolveu. O todo (essência do universo) sempre foi como é agora, e sempre será, porque nada existe em que possa se transmutar... (Carta a Hesíodo de Epicurao: 38-8).  
Para Leucipo, tudo ocorre segundo a necessidade; diz de fato no seu livro “Sobre a mente”:
Nenhuma coisa nasce sem motivo, mas tudo por uma razão e necessidade.
(Diels, it Fragmente der Versokratiker – Leucipo).
Lucrécio procura ver por trás das aparências.
Se deixarmos um jarro com água ao sol, a água desaparecerá. Mas houve de fato destruição da água? Não. Se o jarro estivesse fechado, a água não poderia desaparecer. Ela se transformou em “ar” (vapor), mas continuará a ser algo material, que não atravessa paredes sólidas.
                                             Aromas e Átomos
   Lucrécio desenvolve o seu raciocínio mostrando deve permanecer inalterada (ou constante) no mundo, porque se todas as coisas pudessem ser gastas e destruídas, o mundo já teria sido gasto. No entanto, o mundo permanece o mesmo. Para ele, essas coisas que não se modificam são os átomos, que constituem todas as coisas da natureza.
   Lucrécio analisa os fenômenos, e seus argumentos são do mesmo tipo dos que se poderia usar numa aula de física, atualmente.  Ele mostra que existem coisas que se acredita serem materiais, mas não se vê. O próprio ar, apesar de invisível, produz fenômenos observáveis.

De acordo com os atomistas, quando ocorrem mudanças 
ou transformações na natureza os átomos permanecem 
inalterados. Por exemplo, quando uma penca de bananas
amadurece ocorre uma transformação, mas os átomos
que constituem as bananas permanecem inalterados.
   Também não podemos ver os odores, mas deve haver algo que sai dos corpos aromáticos e chega até nós. Essas coisas são materiais, pois os odores não escapam de um frasco bem fechado. Essas coisas são tão rarefeitas que são invisíveis; os elementos dessas coisas, que não se modificam, devem ser invisíveis também. Eles não têm as propriedades das coisas materiais que podemos ver.
   Suas únicas propriedades são o tamanho, forma e peso (ou o que é massa para nós). 
A cor e o odor não seriam propriedades dos átomos, mas as sensações produzidas pelas formas dos átomos, mas pelas sensações produzidas pelas formas dos átomos que atingem os nossos órgãos dos sentidos.
   Lucrécio concebia os aromas como sendo devidos a átomos que escapam dos corpos e chegam até nós – do mesmo modo como concebemos a propagação de moléculas aromáticas através do ar.
                                     A Estrutura da Matéria
   De acordo com Lucrécio, as coisas não são totalmente unidas e preenchidas por corpos (sólidos), pois há também o vazio nas coisas. Se não houvesse o vazio (na natureza), os objetos não poderiam se mover, pois as propriedades dos corpos, como impedir e segurar, estariam sempre presente em todos os lugares e em todos os instantes. Nada, portanto, poderia se mover, pois nenhuma coisa cederia seu lugar.
   E ainda, por mais sólidas que se pense serem as coisas, você pode apreender disto que direi que elas são constituídas por corpos rarefeitos: nas rochas e cavernas a umidade da água atravessa tudo, e todas as coisas choram numerosas gotas; o alimento se distribui pelo corpo inteiro dos seres vivos... E porque veríamos que uma coisa pode ser mais pesada do que outra e, no entanto, possuindo o mesmo tamanho?... ...  quando uma coisa é mais leve e de mesmo tamanho, isso prova que ela possui mais vazios dentro de si. (De rerum natura, I – 239).
   Como a possibilidade de existência do vácuo ou vazio era muito combatida, Lucrécio cita um caso para provar sua possibilidade:
Se dois corpos grandes se chocam e, em seguida, se afastam rapidamente um do outro, o ar deveria preencher rapidamente o vazio que se forma entre os dois corpos. No entanto, por mais rápidas que sejam as correntes de ar, o espoco inteiro não pode ser preenchido em um momento... (Idem, I – 382).
Após muitos argumentos, Lucrécio estabelece um universo com apenas espaço vazio e átomos em movimento, sendo os átomos partículas invisíveis e muito pequenas. Em seguida, ele tenta explicar fenômenos como os trovões, raios, ventos e a força dos ímãs, baseando-se em suas hipóteses. Chega mesmo a descrever a estrutura da alma.
                                                 Alma Material
   Lucrécio admite a existência de uma alma nas pessoas, mas essa alma é apenas uma parte do corpo, mas constituída por átomos diferentes, isto é, outra espécie de matéria. Assim, além do

Para Lucrécio a alma seria constituída por átomos
diferentes dos átomos do corpo humano.
corpo material, teríamos outro constituído por átomos diferentes. Essa alma transmitiria ordens aos membros e sensações do coração.
   Lucrécio dizia que a alma devia ser uma coisa material porque se a alma era capaz de mover um braço, então era capaz de interagir com a matéria do braço; e a única coisa que pode interagir com a matéria é a própria matéria. Quando uma pessoa morre, rompem-se as ligações da alma com o corpo, e os átomos da alma se espalham por todos os lados, destruindo a individualidade. Não há, portanto uma alma imortal.
   De vez em quando, aparece alguma citação de deuses na obra de Lucrécio, algumas vezes isso é feito apenas como recurso prático. Como, por exemplo, quando ele fala de Vênus para representar as forças geradoras da natureza; outras vezes, fala de “ídolos” ou “demônios”. Esse tipo de linguagem também aparece na obra de Demócrito. Observe que a palavra “daimon”, em grego, não tem conotação má.
   Para Lucrécio e Demócrito, existem os demônios, mas eles também são coisas materiais: podem existir fora dos objetos coisas que são da mesma natureza da alma; são constituídas também por átomos rarefeitos, e podem existir por um tempo mais ou menos longo e se deslocar de um lado para outro.
   Quando uma pessoa está dormindo, ela tem maior sensibilidade aos demônios, que podem penetrar na pessoa e provocar visões, que são os sonhos. Essa é a primeira vez que se encontra na Grécia um tipo de pensamento que procura reduzir todos os fenômenos a causas naturais e compreensíveis. Sem a introdução de analogias com o comportamento humano, isto é, sem apelar para o pensamento mítico.

  

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